O Exemplo das Crianças

“Mar transparente como eu. No meu mar não há náufragos. Eu aceito tudo e todos.”
Maria Luísa Ferreira

1.
As sucessivas vagas de migrantes que chegam de países sub-desenvolvidos tornou-se um dos grandes temas da actualidade na Europa e também nos EUA. As reacções são díspares variando da recusa ou repulsa até ao acolhimento solidário e generoso. 
Alguns líderes estimulam a rejeição evocando o perigo do terrorismo ou a possibilidade de os recém-chegados poderem roubar empregos ou ser potenciais criminosos.
Está, pois, criado um ambiente que pode ser de hostilidade mais ou menos agressiva. Nós, portugueses, somos de uma forma global solidários e receptivos e ainda não houve uma vaga contra os imigrantes. 
Por outro lado, sem que se perceba bem porquê, têm sido poucos os que escolhem o nosso país como destino depois das suas dramáticas fugas dos países de origem. Por isso, este parece não ser ainda um problema ou sequer uma questão para nós. Por isso mesmo me parece importante reflectir agora, sem pressão nem paixão, sobre aquele que será um dos problemas importantes dos próximos anos para a Europa e, mais tarde ou mais cedo, para Portugal.

2.
Uma primeira ideia é para mim muito clara: a situação de vida nos países de origem destas pessoas é absolutamente inaceitável e insustentável. Pode ser a guerra, a fome, a violência, a miséria, o banditismo, a ausência de qualquer lei ou a existência de um regime ditatorial e desumano. Em síntese, a falta das mais elementares e básicas condições de uma vida minimamente digna. 
Só assim se pode explicar que as pessoas aceitem colocar-se a caminho de algo que não sabem bem o que é mas que acreditam que será melhor, mesmo que seja apenas um pouco melhor. Mesmo que implique colocar a sua vida em risco. Mesmo que signifique centenas (ou milhares) de quilómetros de viagens perigosas. Mesmo que obrigue a deixar para trás a sua casa, a sua família e as suas origens. Mesmo que sejam forçados a pagar a crápulas que ganham muito dinheiro com a sua situação mas que não asseguram sequer o seu transporte em segurança.

3.
Neste enquadramento, podemos perceber as causas directas. Claro que podemos escrever frases bonitas e reflexões ponderosas sobre política internacional, sobre estratégia nas relações bilaterais, sobre condições naturais, sobre tradições, sobre convenções, sobre a inevitabilidade da desigualdade e outras banalidades. Nós sabemos qual é a real origem da situação que obriga milhares (ou milhões) de pessoas a fugir. 
Mas, qual pode ser a solução? Não creio que possa existir uma resposta fácil a esta simples pergunta. De tudo o que reflecti sobre o assunto, parece-me cada vez mais evidente que a melhor solução seria a comunidade internacional ajudar de forma activa na criação de condições para o desenvolvimento integrado da qualidade de vida destas pessoas. Isso significaria que, em vez de gastarmos recursos a construir obstáculos para evitar a sua fuga e posterior chegada aos nossos países, devíamos apostar em desenvolver a economia, estimular a educação, criar emprego, gerar riqueza nos seus países. 
Se as pessoas tiverem um emprego, acesso a educação, uma casa para viver e um sistema básico que assegure uma vida digna não precisarão de procurar outros destinos. Será isso possível? Eu acredito que sim. O que tem de mudar é o paradigma em que se baseia a política internacional. O que tem de mudar são os fundamentos de uma ajuda que é, obviamente, muito útil para evitar maiores catástrofes mas que não resolve o problema. Temos de investir menos em meios de destruição (e não falo só de armas...) e mais em meios de construção (escolas, hospitais, estruturas económicas, organizações empresariais, habitações, etc.).

4.
No século XX, milhares de portugueses sairam de Portugal em busca de trabalho e de uma outra situação para si, para as suas famílias e para os seus filhos. França, Alemanha, Luxemburgo, EUA, Venezuela e muitos outros países foram o destino. E por lá ficaram durante anos e anos. Levaram família e criaram descendentes. Montaram os seus negócios ou foram trabalhadores exemplares ajudando ao crescimento de empresas e de muitos países. Muitos fugiram à miséria que por cá viviam. Todos desejaram uma vida melhor e lutaram por ela. 
Hoje, são milhões os portugueses espalhados um pouco por todo o mundo. E nós temos orgulho no seu exemplo. Porque não desistiram e porque quiseram construir um outro destino para as suas vidas. Por isso, podemos certamente compreender as razões que levam milhares de pessoas a buscar abrigo na Europa ou noutros países mais desenvolvidos. Da mesma forma que gostámos que os nossos emigrantes fossem acolhidos noutros países, parece-me lógico que sejamos nós agora a dar a mão e a acolher os desesperados que nos batam à porta. 

5.
Evidentemente, a coexistência com o “outro” pode fazer-nos sentir algum desconforto. Mas, se pensarmos bem, podemos olhar para o exemplo que muitas crianças portuguesas (e estrangeiras) já hoje dão em escolas onde há crianças de vários países e de culturas bem diferentes. Se olharmos, o que vemos? Crianças brincando umas com as outras, descobrindo novos hábitos, vivenciando outras comidas, celebrando outras festas e aprendendo outras línguas.
O exemplo das crianças é o caminho que devemos seguir. São diferentes, compreendem que são diferentes mas isso não é uma ameaça mas sim mais uma vantagem. Não tem qualquer importância quando respeitamos e aceitamos o nosso vizinho, colega ou amigo. O mundo será muito melhor se for comandado por esta visão: aberta, solidária, acolhedora e amiga.
Novembro/2018
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Publicado no Nº 7 da revista "Sem Equívocos"