Mordaça para os deputados de segunda categoria

1
As eleições legislativas e a nova Assembleia da República trouxeram, logo nos primeiros dias, um inesperado atentado à Democracia: três partidos (Chega, Iniciativa Liberal e Livre), por terem eleito apenas um deputado não constituíram formalmente um grupo parlamentar. Ficariam, por isso, impedidos de falar nos debates quinzenais sobre o estado da nação. Surpreendentemente, os factos são estes: num primeiro momento e com ligeiras diferenças de argumentação, votaram a favor desta decisão: PS, PCP, Bloco de Esquerda e Os Verdes; votaram contra: PSD, CDS e PAN.
Felizmente, por insistência do Presidente da Assembleia da República, houve marcha atrás e todos os partidos lá acabaram por aceitar de forma consensual que o princípio aplicado ao PAN na anterior legislatura se mantivesse válido até ser revisto o Regimento.

2
Apesar de ultrapassado, este atentado à Democraia teve contornos de escândalo e não compreendo como esta situação não motivou um vendaval político e no espaço mediático.
Vejamos as diversas facetas da questão:
-Antecedentes: na legislatura anterior, o PAN também só tinha um deputado mas o parlamento permitiu que pudesse participar e intervir como todos os outros 229 deputados.
-Disparates: (1) O que formalmente impediria as intervenções dos três partidos é o articulado do próprio Regimento da Assembleia da República; este é o primeiro disparate. (2) O segundo disparate (talvez mais grave...) é o facto de, logo em 2015, quando a questão se colocou a propósito do deputado do PAN, em vez de uma decisão precária e abrindo uma excepção não se tivesse logo ali alterado o Regimento para que o problema não se repetisse. Sobretudo quando era já muito claro que havia pequenos partidos, à esquerda e à direita, que estavam na eminência de eleger deputados. (3) O terceiro disparate (felizmente não concretizado) seria a tentação antidemocrática de consagrar, por maioria simples, a aberração de na actual Assembleia da República passarem a existir dois tipos de deputados: os de primeira categoria (eleitos por partidos que conseguiram constituir um grupo parlamentar) e os de segunda categoria (eleitos por pequenos partidos).

3
Esta tentação de silenciar pequenos partidos invocando cinicamente o Regimento (e, repito, ignorando uma boa prática anterior...) é absolutamente inaceitável num Estado democrático em que o Parlamento é a casa onde se exprime a vontade dos cidadãos que com o seu voto elegem os deputados. Como é óbvio, no dia das eleições, os votos são todos iguais e todos têm o mesmo valor de facto.
Veremos, agora, em que medida as alterações ao Regimento acolherão a pluralidade de opiniões, o respeito pelas minorias e o inalienável direito  à palavra que todos os deputados têm de ter.
Escrevo completamente à vontade e apenas por uma questão de princípio porque não votei em nenhum dos três pequenos partidos em causa.
Mas escrevo e interrogo-me: com base em que princípios é que o voto de eleitores do Chega, da Iniciativa Liberal ou do Livre vale menos do que o meu?

4
Assim de repente, o que parece ser mais importante sublinhar é o receio de parte de alguns deputados em que o exemplo do PAN (que, em quatro anos, passou de 1 para 4 deputados) se repita.
Portanto, pensaram os 139 distintos deputados que tentaram aprovar esta inusitada e inqualificável decisão, que é melhor deixar de lado a Democracia e acautelar já o futuro incómodo em que a Assembleia da República possa acolher cada mais vozes divergentes. Mas, por muito incómodo que isso seja, trata-se das mais básicas de uma Democracia. Certamente já ouviram falar...
Em conclusão: em vez do debate franco e livre, em vez do saudável e desejável confronto de ideias alguns dos senhores deputados prefeririam aplicar uma mordaça aos deputados de segunda categoria.
Uma vergonha e um péssimo indicador ao nível dos princípios.
__________
in Jornal Tornado (15/11/2019)