Da Memória

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Ao longo de meses e meses temos assistido a um fenómeno imprevisto no quadro da saúde mental da população portuguesa: a memória e a sua qualidade quando algumas pessoas se sentam nas salas da Assembleia da República onde decorrem os trabalhos de Comissões Parlamentares de Inquérito. É um problema estranho e para o qual os especialistas não encontraram explicação científica. Curiosamente, nas suas pesquisas, os investigadores do fenómeno constatam que o problema afecta pessoas que, num passado muito recente, estavam a desempenhar funções profissionais de elevada responsabilidade e ocupando cargos públicos de relevo em Portugal ou até a nível internacional. Mais imprevisto e surpreendente ainda é que os problemas evidenciados de falta de memória são absolutamente selectivos: há factos (decisões, opções, etc.) que se apagaram de forma dramática e aparentemente irreversível. Mas, as mesmas pessoas continuam a desempenhar outras funções igualmente de relevo e grande responsabilidade. Também não foi conhecido nenhum caso com evidência de que estão a ser acompanhadas por um neurologista (ou outro especialista) no sentido de se tratarem e de recuperarem desta triste condição de saúde. Sobretudo porque são pessoas que ainda terão tanto para dar e, pelo menos algumas, estão longe da idade de reforma.
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Não sendo eu um especialista em psicologia, neurologia ou qualquer outra ciência que possa estudar o fenómeno, continuo intrigado e preocupado.
E comecei a pensar: uma pessoa normal toma uma decisão que envolve a aplicação num projecto de milhões de euros. Ou dá o seu aval a que outros recebam por empréstimo milhões de euros. Será que vai esquecer essa decisão com a facilidade como já esqueceu o que comeu ao almoço em 3 de Setembro de 2007? 
Consultei vários livros em que reputados autores e cientistas explicam o funcionamento do cérebro e os mecanismos da memória. Em nenhum encontrei uma explicação ainda que parcial deste fenómeno. Portanto, estaremos perante algo de novo e que poderá gerar uma nova área de investigação ou poderá ser objecto de teses de doutoramento. Ou poderá ainda ser criada uma fundação para patrocinar esse estudo. Mas, sem a menor dúvida, temos de fazer um esforço sério para que este fenómeno seja estudado e desvendado algum mecanismo que permita a sua prevenção no futuro. A bem da saúde mental do nosso país e para que não haja mais vítimas. Sobretudo pessoas que, durante anos e anos, deram o melhor de si para gerir bancos, empresas ou ministérios. E, agora, estão completamente abandonados no infortúnio e na desgraça de não saberem o que lhes aconteceu e o que se passa com uma faculdade essencial como a memória. Estão certamente desesperados com a sua condição e, tendo recursos financeiros provavelmente limitados, estarão ansiosos e preocupados com o seu futuro: sem memória, sem emprego e sem esperança em encontrar novas oportunidades de trabalho. Há que fazer alguma coisa. É urgente.
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Ao escrever este texto não deixei de pensar na minha avó que me ensinou: “apanha-se mais depressa um mentiroso do que um coxo”... Como estas palavras me parecem cada vez mais sábias! Se fosse viva, a minha avó talvez encontrasse com rapidez a solução para a explicação deste inusitado fenómeno. Imagino-a a analisar a situação e a dizer que estas vítimas da falta de memória não estão doentes. Não. Nada disso. Talvez apenas tenham apenas uma obscena falta de vergonha. Obrigado, avó!
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in Jornal Tornado (15/06/2019)