Corrupção: Modo de Usar

1
O fenómeno da corrupção não é, infelizmente, recente. Não está circunscrito a uma área específica da actividade humana nem a uma região. Em Portugal, atingiu nos últimos anos uma expressão mediática que nos dá a sensação de estar em toda a parte e de ter uma dimensão muito grande. 
Além disso, estamos hoje mais atentos e alerta sobre essas práticas. E, sobretudo, começamos a deixar de as considerar inevitáveis ou aceitáveis. Mas isto não deve descansar-nos. A corrupção é um dos problemas mais sérios que temos no nosso país. Seguramente, é uma das causas da sua crónica falta de competitividade e do descrédito com que muitos portugueses olham para os políticos e outros agentes que circulam e actuam no espaço público.

2
Sempre que o tema surge numa conversa ou numa notícia, lembro-me de uma história que se passou comigo há mais de 10 anos e que foi um bom exemplo de como lidamos com a corrupção.
Um amigo meu, arquitecto de profissão, precisava de obter um documento de uma autarquia local para algum projecto em que estava envolvido. Para sossego dos leitores, posso garantir-vos que o documento necessário não escondia nenhum projecto ilícito nem era nada de ilegal. Tratava-se de uma formalidade administrativa que, quando muito, poderia ser demorada ou de complexa forma de obter.
Pois, perante uma situação absolutamente legal e definida nos procedimentos da autarquia, qual foi a pergunta que o meu amigo me colocou?
Um pergunta simples: “QUEM é que tu conheces na Câmara que possa ajudar a resolver este problema?”
Na altura não estranhei a pergunta. Até me pareceu lógica...
Mas, de facto, esta era uma pergunta perigosa e indicadora da forma como muitos de nós encaramos estas situações: em vez de querermos saber COMO se pode tratar de um assunto, perguntamos QUEM conhecemos que... possa dar uma ajuda, que possa resolver um problema (mesmo que não seja um “problema” mas sim uma formalidade administrativa). QUEM nos pode resolver (ou ajudar, ou dar uma palavrinha, ou...) a questão?
Esta segunda pergunta é, infelizmente, comum e mostra bem como lidamos com a Administração Pública ou com muitas outras entidades. 

3
Queremos sempre que alguém abra uma excepção, que nos trate de forma diferenciada, que nos resolva uma situação, que nos dê uma ajudinha, etc. Daqui a pouco estamos à espera que “feche os olhos” ou que seja “compreensivo”...
Se esta atitude não for suficiente, podemos ainda equacionar que esse gesto terá um custo e, em muitos casos, estamos dispostos a pagar.
Ora, tudo isto são as bases e um “modo de usar” a corrupção. Pode ser a pequena corrupção em troca de uma nota de 10 ou 20 euros. Mas... não deixa de ser corrupção.
O que potenciou esta natural predisposição em usar estes mecanismo de obter algo em troco de uma compensação. 
Se fazemos isso para obter documentos legais ou meras formalidades, imagine-se o que alguns estão disponíveis para fazer para obterem um contrato de milhões.

4
A corrupção é uma realidade trágica. Podemos continuar a assobiar para o lado ou a dizer que isso são os outros que fazem. Mas é tempo de sermos nós a dizer “não” e a mudar comportamentos no dia-a-dia.
Essa deve ser a nossa primeira tarefa para ajudar no combate à corrupção. Se nós mudarmos, se contribuirmos para a mudança, se denunciarmos o que se passa, talvez consigamos evitar o mau desfecho que toda esta situação anuncia há muito tempo. 
__________
Publicado no Nº 10 da revista  "Sem Equívocos"