19 de Julho: As Eleições do Nosso Descontentamento

Os resultados das eleições legislativas de 19 de Julho revelaram, claramente, uma vitória e várias derrotas. A vitória: pessoal (personalizada) do primeiro--ministro Cavaco Silva e da sua «máquina eleitoral» (da televisão aos 18 meses de governação, da capacidade de mobilização do PSD aos seus tempos de antena, do estilo populista ao discurso simplista). Derrotas várias: em primeiro lugar, derrota do PRD, partido que motivou a queda do governo anterior e que pagou (quase) sozinho a factura. Derrota d CDU (PCP) porque, uma vez mais, não conseguiu crescer eleitoralmente e ainda porque não conseguiu convencer o eleitorado de que a mudança de estilo, de imagem e de linguagem desta nova coligação em relação à APU era real e duradoura. Derrota do PS porque não conseguiu fazer regressar os votos perdidos, em 1985, para o PRD (o PS baixou, mesmo em termos percentuais, em alguns círculos) e porque, se numericamente é agora o maior partido à esquerda do PSD, demonstrou enormes fragilidades durante toda a campanha, não conseguindo transmitir ao eleitorado a confiança necessária a um partido que aspira ao exercício do poder. Derrota, enfim, dos pequenos partidos (incluindo o CDS) porque ficou provado que, apesar dos contributos muito válidos (PSR, por exemplo) e da clara autonomia e originalidade de projectos (MDP/CDE, por exemplo), nenhum logrou alcançar representação parlamentar e nem sequer uma votação expressiva.

A NOITE DA SURPRESA 

Na noite de 19 de Julho. uma esmagadora maioria dos portugueses ficou surpreendida, sobretudo com a dimensão da vitória do PSD. As explicações para este acontecimento são múltiplas e, provavelmente, muito diversas. Contudo, três aspectos parecem decisivos: (1) a desunião reinante à esquerda; (2) a manipulação da comunicação social; (3) a influência decisiva da televisão. 
A imagem de desunião e confronto aberto que a esquerda deu de si própria foi fundamental para criar no eleitorado hesitante a necessidade de uma maioria homogénea. Que garantias teria o eleitorado perante uma eventual maioria PS/PRD/CDU? Seriam estes partidos, que durante a campanha e a pré-campanha se tinham combatido fraticidamente, a base de um governo estável, desejo da esmagadora maioria dos portugueses? Claro que não. Por outro lado, à direita, estava encontrado naturalmente o seu «chefe». Daí o resultado devastador do CDS. A vitória de Cavaco Silva foi, em primeira instância, a vitória da prometida estabilidade contra o real conflito que se vivia à sua esquerda. Se Cavaco Silva era um primeiro-ministro minimamente credível, Victor Constâncio era um líder de um partido que, pelo menos aparentemente, procurava apenas liderar a esquerda portuguesa. E isto partindo do princípio de que a liderança do PS era sólida e incontestada. Ramalho Eanes, pela sua atitude de quase anti-candidato, passou despercebido, nunca se afirmando como o real alternativa. Ao contrário do que alguns analistas escreveram, o eleitorado português não escolheu bem nem mal, consoante o seu posicionamento. E não escolheu pela simples razão de que não havia escolha possível. Cavaco Silva foi talvez o único que, desde início, compreendeu claramente esta situação e a explorou até às últimas consequências.
O segundo aspecto fundamental, o do controlo dos meios de comunicação social, designadamente da televisão. A vitória de Cavaco Silva não se construiu durante a campanha eleitoral. Durante meses, ministros, secretários de Estado e o próprio primeiro-ministro desmultiplicaram-se em visitas e inaugurações, todas devidamente cobertas pela RTP. Na televisão assistiu-se durante meses à exibição de inúmeros anúncios divulgando medidas governamentais, reais ou imaginárias, verdadeiras ou falsas. Num outro plano, atente-se no destaque dado pelos serviços noticiosos aos conflitos entre o PS e o PRD, desgastando assim a sua imagem. Numa perspectiva maniqueísta, de um lado aparecia a imagem de homogeneidade, trabalho e eficiência do governo; do outro, a luta desenfreada pelo poder na área da esquerda e a obstrução da acção do governo PSD. 
Em terceiro lugar, o papel decisivo da televisão nas opções eleitorais dos portugueses. Desde as últimas eleições presidenciais que a televisão assumiu (finalmente) em Portugal um peso fundamental na luta política. E até é fácil compreender porquê. É cada vez menor o número de leitores de jornais; a maioria deles concentra-se nos grandes centros urbanos e no litoral. A grande fonte de informação da maioria dos portugueses é a televisão. Quem, directa ou indirectamente, controlar a televisão é detentor de uma autêntica máquina de angariar votos. Mário Soares e Freitas do Amaral já o tinham compreendido aquando da pugna presidencial. Aliás, agora, não foi por acaso que Cavaco Silva rejeitou toda e qualquer possibilidade de participar nos habituais debates televisivos com os seus opositores. A própria directiva do Conselho de Comunicação Social sobre a igualdade de tratamento a todos os partidos acabou por se revelar uma preciosa «ajuda» ao PSD. O resultado desta situação foi o seguinte: durante meses, para além dos tempos de antena (pouco vistos) e das reportagens sobre as actividades pré-eleitorais dos partidos da oposição, ninguém contradisse a verdade «oficial». Esta é uma dura realidade que deverá ser reflectida e combatida por forma a que possamos continuar a viver num regime pluripartidário em que a alternância do poder possa existir, O que tem acontecido é que, cada vez mais. o eleitorado é condicionado na sua op-ção, Mas só este aspecto daria para um outro artigo.

PS: REFLECTIR PARA TRANSFORMAR 

«A Europa não recusa as opções de esquerda contanto que esta seja capaz de propor as respostas coerentes às situações que são as nossas, de europeus,»
Alfredo Margarido, O Jornal(24/07/81) 

Depois do «terramoto» de 19 de Julho que fazer com esta esquerda? Tudo indica que Cavaco Silva conseguirá governar nos próximos quatros anos. A esquerda terá de reflectir e assumir-se como oposição consciente, firme, crítica, construtiva e inovadora. De reflexão profunda e renovação se espera que sejam os próximos tempos. Há, agora, que ir à raiz dos problemas, eliminando os tabus existentes e começar, sempre que necessário, a percorrer decididamente novos caminhos. Com abertura, flexibilidade, realismo e ousadia. 
Na renovação da esquerda portuguesa cabe um papei primordial ao PS. Mas não exclusivo. O facto de ser o maior partido à esquerda do PSD, «obriga-o» a tentar captar e enquadrar (e não usar eleitoralmente!) todos os movimentos, pessoas e ideias que realmente passam contribuir para a construção de uma alternativa credível e eficaz ao cavaquismo. Se isso implica uma abertura do PS às outras tendências ia esquerda, significa também que esses sectores, sem sectarismos, cooperem com os socialistas e compreendam o seu papel aglutinador da alternativa. 
Isto significa, muito claramente, que não se justificarão novas participações eleitorais dos pequenos partidos. Se a diversidade e a diferença representam uma grande força cultural e política da esquerda, em termos eleitorais, é um erro clamoroso a dispersão sistemática de milhares de votos, em todos os círculos, sobretudo se se mantiver a actual legislação eleitoral. Seria muito mais válida a contribuição, irreverente e muitas vezes inovadora desses partidos mas num outro plano. A busca de novos caminhos para a esquerda portuguesa passa também pela procura de novas formas de intervenção. Se os partidos são o sustentáculo da vida política, não são, de forma alguma, o único meio para influenciar a opinião pública e os órgãos do poder. Se, em vez de aparecimentos episódicos durante as campanhas eleitorais, os pequenos partidos apostarem numa acção de sensibilização e informação constantes, talvez os resultados concretos sejam bem melhores. 
O Partido Socialista está ainda a viver sob a tutela de Mário Soares. Victor Constâncio foi, há meses, considerado como «líder de transição». E se os factos não confirmaram plenamente este juízo, também não o desmentiram de forma cabal. A liderança de Victor Constâncio tem sido oscilante; entre afirmações de iniciativa política fortes e decididas e vulnerabilidades gritantes em termos de táctica (veja-se, por exemplo, a evolução da sua postura e intervenção ao longo da última campanha eleitoral). Victor Constâncio obteve uma larga vitória no último congresso, mas ainda não conseguiu mudar o PS onde ele mais carecia: reforço da organização, renovação ideológica e rejuvenescimento dos quadros. Três tarefas urgentes, quanto mais não seja porque dentro de escassos dois anos teremos novas eleições (autárquicas e para o Parlamento Europeu). O PSD já compreendeu que na base dos sucessos eleitorais estão fortes organizações locais e por isso é, actualmente, o único partido que consegue «competir» com o PCP em tarefas de propaganda e mobilização...
A nível ideológico, foi já anunciada a II Convenção da Esquerda Democrática. Deseja-se que ela seja ainda mais ampla e participada. E que os resultados dos seus debates enriqueçam, no plano da acção política, toda a esquerda, designadamente a esquerda parlamentar. Ainda neste âmbito, porque não realizar, em finais de 1988, convenções regionais, distritais ou locais com o objectivo de estudar a participação da esquerda democrática nas eleições autárquicas e no exercício do poder local? 
A esquerda portuguesa tem de compreender as novas realidades sociais, científicas, económicas e culturais que este final do século XX apresenta. E tem de apresentar propostas concretas e realistas. Neste momento, parar significará entregar o poder à direita por muitos anos. 
Quanto ao rejuvenescimento dos quadros trata-se de uma necessidade imperiosa. É indispensável que os jovens participem activamente na orientação e definição de estratégias da esquerda. Não basta atribuir-lhe um ou dois lugares de deputados. Rejuvenescer significa, por um lado, responder ás necessidades e anseios reais dos jovens e, por outro, acolher os seus contributos certamente irreverentes, mas também enriquecedores e inovadores. O PS não deverá fugir a esta tendência. 

PCP: À ESPERA DA MUDANÇA 

No que diz respeito ao PCP há que aguardar a sua evolução interna e os resultados do debate interno que ocorrerá com a preparação do novo congresso. Fala-se em mudança, sucessão e renovação. A dúvida que subsiste é a de saber se as forças que internamente se manifestam a favor de uma mudança real conseguirão impor os seus pontos de vista aos protagonistas dos imobilismos tradicionais. 
A campanha eleitoral da CDU prenunciou, pelo menos na aparência maior abertura. Mas logo a «velha guarda» criticou essa estratégia invocando os maus resultados eleitorais. Se o desejo de mudança é uma realidade, qual a direcção a seguir? E que medidas concretas vão ser tomadas?

PRD: O FIM DE UM SONHO 

Por seu turno o PRD dificilmente conseguirá sobreviver ao abandono de Ramalho Fanes e à pesada derrota de 19 de Julho. O papel que o PRD pretendeu desempenhar na sociedade portuguesa esgotou-se. Quis ser um partido com uma nova ética política e cedo se emaranhou nos meandros e tentações da luta política, surgindo, cada vez mais, como um outro partido e não como o partido novo. Quis ser a base de apoio da futura acção política de Ramalho Eanes e acabou por provocar, com o acumular de erros, o desaparecimento da cena política do ex-Presidente da República. Quis situar-se na área da esquerda democrática e foi durante meses o sustentáculo principal do governo da direita. E isto para já não falar nos episódios lamentáveis da participação nas eleições autárquicas e da escolha do candidato presidencial. 
Agora, com apenas sete deputados e sem estruturas organizativas relevantes, sem um projecto claro e autómono da figura e exemplo do anterior Presidente da República, o PRD tenderá a desaparecer. Restarão os seus militantes, uma vez mais desiludidos, muitos dos quais homens e mulheres de esquerda, cujos contributos não deverão ser desprezados. Também deles se espera um contributo para a desejada renovação da esquerda portuguesa. 

O FUTURO: PREPARAR A ALTERNATIVA 

O novo Parlamento terá em mãos decisões fundamentais: revisão constitucional, regionalização, legislação laborai e eleitoral, situação na comunicação social, etc. 
Com tão ampla maioria do PSD, as tarefas da esquerda parlamentar estão muito dificultadas. Mas, sobretudo na questão da revisão constitucional, é importante que o PS não ceda nas questões vitais. Em causa estarão os fundamentos do nosso sistema político-económico; se a busca de consensos é positiva, não poderão ser sacrificados os princípios. 
A esquerda precisa de preparar, desde já, a alternativa para 1991. É necessário que toda a esquerda encontre novas formas de intervenção, novas ideias, novas áreas de reflexão. 
Se é o exercício do poder o fim último da acção política, neste momento, o mais importante é criar as condições indispensáveis para a construção de uma alternativa forte e coerente. Não se pode esperar calmamente pelos erros dos outros. A alternativa pela negativa experimentada nas últimas eleições foi um completo fracasso. Há que apostar decididamente numa nova forma de estar e ser oposição que justifique, em novas eleições, o exercício do poder. 
Portugal precisa de uma proposta de esquerda para uma política moderna, moderada, solidária e europeia.
Este «terramoto» de 19 de Julho mais do que uma catástrofe deve ser encarado como um estímulo. 
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Publicado na revista "Seara Nova" (Nº 13- Agosto/Setembro de 1987)