Como que por milagre, a revolução do digital invadiu as nossas vidas e
infiltrou-se nos negócios. Acontece que, tal como nas nossas vidas, a
componente digital é muito importante mas... não resolve tudo nem deve ser a
essência da estratégia das empresas.
Esse é o paradoxo que temos de resolver urgentemente: mais do que impor
o digital, temos de continuar focados nos clientes, no negócio. E integrar, de
forma adequada e dinâmica, as múltiplas ferramentas digitais de que felizmente
dispomos.
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Quando comecei a trabalhar, ainda se usava telex e o envio
de cartas a clientes era o meio de comunicação mais comum. A empresa tinha
ainda uma ou duas pessoas cuja função era dactilografar documentos usando as
máquinas de escrever. As fichas de clientes estavam guardadas em gavetas, por
ordem alfabética, e eram actualizadas à mão. As análises das vendas eram feitas
com recurso a calculadoras e objecto de relatórios pacientemente
dactilografados.
As notas de encomenda eram redigidas em papel com cópia obtida
com folha de papel químico. As encomendas de produtos eram separadas
manualmente no armazém da empresa e distribuídas pela sua frota.
Pouco tempo depois, surgiu um aparelho que revolucionou as
comunicações empresariais: o fax que, em poucos anos, passou a ser o meio de
comunicação por excelência pela sua rapidez e fiabilidade.
As comunicações telefónicas eram baseadas exclusivamente na
rede fixa e era comum, se estivessemos fora do nosso local de trabalho, utilizar
uma cabine telefónica ou um telefone público disponível na maioria dos cafés e
de outros estabelecimentos comerciais.
Esta descrição não fala de um mundo do século XIX... Fala da
actividade comercial comum no final dos anos 80 do século XX.
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Uns anos mais tarde, em alguns casos ainda na década de 1980,
os computadores pessoais começam a entrar em grande força nas empresas de média
dimensão (e, um pouco mais tarde, nas micro e nas PME’s). Primeiro substituindo
as máquinas de escrever com os programas de processamento de texto e, logo
depois, com os programas ditos de “facturação” que foram os precursores dos
programas de gestão comercial. Pouco depois, uma mudança ainda mais radical e
estrutural: a chegada da Internet e do sistema de correio electrónico ao mundo
empresarial. E, finalmente, o aparecimento dos primeiros telemóveis.
Mais recentemente, a massificação/democratização do acesso à
internet e o seu uso intensivo: as redes sociais, os blogues, as plataformas
colaborativas ou o acesso a inúmeros conteúdos (formativos, informativos, etc.).
E assim, no espaço de pouco mais de 10/15 anos, as nossas vidas
deram uma volta completa. A mudança foi tão rápida e tão intensa que, ainda mal
demos por ela, e já estávamos completamente imersos na revolução digital: na
vida pessoal, na actividade profissional e na gestão empresarial. Hoje, viver
sem recurso a meios digitais é impossível (ou quase...). No mundo das empresas,
vemos que (quase) todas estão cada vez mais dependentes da digitalização dos
seus processos e muitas assentam a sua actividade em modelos de negócio
exclusivamente digitais e online.
3.
3.
Neste contexto, muitos empresários e gestores decidem
investir no marketing digital e na presença na Internet: desde o simples website até sofisticadas lojas de
comércio electrónico. E ainda: a presença nas redes sociais, o email marketing,
a digitalização crescente dos processos comerciais (smartphones e tablets nas
mãos das equipas de vendas), a introdução de soluções de CRM, comunicação cada
vez mais personalizada (as Apps no bolso do cliente a receber
notificações/promoções/informações específicas), os slideshows muito vistosos, e-newsletters,
os vídeos no You Tube e... todo um mundo infidável de soluções disponíveis e
cada vez mais acessíveis em termos de investimento.
4.
Feita esta descrição, podemos dizer que nunca foi tão fácil
nem nunca foi tão barato desenvolver estratégias e programas de marketing, de
comunicação ou de fidelização de clientes.
Contudo, esta realidade teve/tem, paradoxalmente, um efeito muito
nocivo de, por vezes, criar uma ilusão: acreditamos que, se formos digitais,
conseguimos ser mais competitivos. Ora isso não é verdade. As tecnologias, por
mais sofisticadas que sejam, são apenas instrumentos que podemos activar em
benefício dos nossos clientes e dos nossos negócios. Mas, em momento algum, são
uma solução milagrosa para o êxito de uma empresa e para a sustentabilidade do
seu projecto.
A perigosa ilusão do digital é pensarmos que, por exemplo, sendo
tão fácil comunicar com 100 mil potenciais clientes por email, podemos esquecer
as outras dimensões do nosso negócio: a qualidade de produtos/serviços; a força
da nossa imagem; a eficácia da nossa mensagem; o poder da nossa real proposta
de valor que nos propomos entregar; a vantagem competitiva sobre os nossos concorrentes;
a capacidade logística para entregar o produto ou prestar o serviço no momento
certo e no local adequado; a rapidez dos processos; a simpatia e a capacidade
de serviço ao cliente dos nossos colaboradores; a capacidade de acompanhar as
tendências e/ou antecipar as necessidades dos consumidores; a capacidade de
desenvolver estratégias de fidelização de clientes fortes baseados em processos
de gestão personalizada da relação com os clientes em todas as dimensões (e não
só em instrumentos digitais massificantes), entre muitos outros.
5.
O desafio actual dos empresários, dos gestores e das suas
equipas é, cada vez mais, a capacidade de eliminar este paradoxo gerado pela
ilusão digital: a base do sucesso de uma empresa reside (como sempre residiu...)
nas pessoas e nas suas competências, na visão e na estratégia, nos processos,
no serviço, na capacidade de proporcionar verdadeiras experiências, na
capacidade de encantar os clientes.
Nos anos 70 do século passado ou nos dias de hoje, o foco tem
de ser sempre o cliente. Podemos servi-lo ao balcão de uma pequena loja de
comércio tradicional ou num sofisticado sistema digital de gestão de encomendas
online. Mas, no final do dia, o que contará sempre é a sua satisfação com a
nossa empresa, a sua vontade de voltar a comprar o nosso produto e a
possibilidade de nos referenciar (e recomendar) a outros consumidores.
Não podemos obviamente ignorar a dimensão digital, isso
seria um erro colossal. Mas... não alimentemos ilusões: a essência de qualquer
negócio (grande, médio ou pequeno) continua a ser a sua capacidade de procurar,
compreender, conquistar, satisfazer e fidelizar clientes.
Fevereiro/2016
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Publicado na Revista do Candal Park.